"Acidente": filme ensaio documental



Selecionado para a última edição do Festival Sundance, o documentário brasileiro “Acidente”, de Cão Guimarães e Pablo Lobato, é um belo exemplo de filme ensaio documental. A linguagem é desenhada com traços de diferentes práticas documentais, como diário de viagem e filme etnográfico. O tom é finamente subjetivizado. Vai além da pura performance autoral e se converte em exemplo contemporâneo de filme ensaio.
Os autores, Cão Guimarães e Pablo Lobato, construíram um poema com o nome de 20 pequenas cidades de Minas Gerais. O documentário é uma colagem de pequenos curtas, por assim dizer. Um em cada cidade. Em cada um, o sentimento dos autores está plasmado nos cortes, no som, nas cores, nos enquadramentos. Não é necessário ler ou escutar nenhum texto escrito pelos dois diretores para entrar com eles nessa viagem poética e crítica por vilas mineiras.
Logo na primeira parada, o filme é bem claro em suas intenções. A cidade é Heliodora. Os planos são noturnos, bem escuros. O personagem é um simpático travesti que canta afinado e vive meio isolado, meio renegado, em busca de aceitação e amor romântico. Ele conversa, segurando uma vela e andando. Leva na mão, sua própria luz para o filme. A luz é mínima, não se vê bem sua casa; afinal Heliodora vive meio escondida. A cidade não quer saber onde ela mora. Depois de quase cinco minutos de filme, uma nova cidade: Virgem da Lapa. Heliodora e seus habitantes ficaram pra trás. Já os limites da aceitação e do convívio na comunidade interiorana mineira, não. Seguem na memória sensorial do espectador. Mesmo se o poema nao estivesse escrito em palavras, seria possível desfrutar-lo; já que está plasmado na montagem. Veja aqui a primeira cidade do doc.

Pensando sobre Filme Ensaio Documental




Pegar do tecido do real o que lhe pareça importante, e com esse material construir a realidade do filme; expresando-o em cores, luzes, cortes, enquadramentos, montagem de sons, e todo o mais que a gramática audiovisual contemporânea possa oferecer. Este parece ser o exercício básico do cineasta que se arrisca a ensaiar livremente a partir de sua própria impressão de realidade, com os instrumentos tecnológicos disponíveis.
O cimento com o qual se monta o filme ensaio documental é uma mescla de substâncias gramaticais do cinema usadas em vários momentos do século 20. Nada tão novo que não já tenha sido experimentado por Vertov, Jean Vigo, Alberto Cavalcanti, Val Del Omar, Basil Wright ou Chris Marker. Mas parece que atualmente, com os equipamentos mais acessíveis economicamente e mais tecnologicamente adaptados à inventividade dos autores, o filme ensaio documental voa mais alto e mais longe.
Um filme ensaio, como prática documental, surgiria quando o autor ensaia pensar sem as garantias de um saber prévio. Para o ensaísta cinematográfico, cada tema lhe exige reconstruir a realidade. A forte subjetivizaçao de alguns documentários vai além do texto oral do realizador que narra em primeira pessoa. É um híbrido que resgata práticas formais das vanguardas históricas. Muitos cineastas experimentam expor seu ponto de vista através da gramática do cinema – sem recorrer à palavra oral. Produz-se um formato livre, que rompe divisões entre o documental e o imaginário, e combina todo tipo de elementos. Essa prática de representação audiovisual encontra base para sua construção na teoria dos gêneros literários, tendo o ensaio literário sido definido como gênero não marcado e livre de prescrições.
No filme ensaio, a materialidade do produto audiovisual: suas cores, planos, profundidades de campo, movimentos de câmara e montagem de som, pra citar alguns exemplos, funcionam como canal para a argumentação, uma opção ao uso de narração verbal como indicador do ponto de vista do autor.
Nos últimos anos, cada festival de audiovisual pelo Brasil e pelo mundo sempre seleciona um ou mais representantes dessas práticas, desses exercícios, desses experimentos; que representam a realidade do tema com a poética e sutilezas (às vezes nem tão sutis) de quem a vive, enxerga, critica....

Experimentalismos de vanguarda nos primeiros documentários

Quando vemos o documentário mais tradicional na forma, podemos pensar que os primórdios da linguagem audiovisual com elementos do mundo real eram pouco criativos e extremamente positivistas. É interessante descobrir que entre os primeiros documentaristas, entretanto, estavam alguns vanguardistas. O início da tradição documental herdou princípios vanguardistas que o cinema de ficção começou a negar a partir dos anos 20. De fato, o documentário, no início dos anos 30, foi refúgio de realizadores da Vanguarda Histórica da década de 10. Funcionou como alternativa à hegemonia nascente do cinema narrativo de ficção. Essa confluência de interesse entre artistas de vanguarda e cineastas emergentes gerou uma série de filmes documentários, quando a própria palavra “documentário” estava sendo inventada. Esses filmes comunicavam com liberdade expressiva e assumido ponto de vista. Bem diferente do que se poderia pensar como origens de um domínio do audiovisual pouco compreendido em suas amplas possiblidades. Como legado da vanguarda artística na linguagem do documentário, é possível perceber:


1) Privilégio do registro improvisado como forma de análise e revelação do real.
2) Construção não-narrativa (interessante que este legado vai gerar o caminho para as formas expositivas do documentário)
3) Experimentação de efeitos fotogênicos e compositivos de enquadre (fragmentação, colagens e justaposições, graças à liberação dos limites narrativos)
4) Experimentações com sons não diegéticos, que provem de outros espaços, porém constroem o ponto de vista.



Esse hibridismo entre vanguardas e documentário só volta a acontecer a partir dos anos 80.
Muitos pesquisadores afirmam que um dos pilares fundacionais da tradição dos documentários está nessa Vanguarda Histórica do início do século XX. Uma corrente do documentarismo aparece ao lado da abstração alemã, do “cinema puro”, do futurismo ou do surrealismo francês.
A seguir, uma lista de realizadores desse período de hibridismos entre vanguarda e documentário, dos anos 20 e 30. A partir dos nomes, dá pra encontrar mais infos pela web

Walter Ruttman (Alemanha) – Berlin, Sinfonia de Uma Grande Cidade (1927)
Sergei Einsenstein (URSS) – October (1927) Que Viva México! (1931)
Jean Vigo (França) – A Propos de Nice (1930)
Basil Wright (Inglaterra) – Songs of Ceylan (1934) Night Mail (1936)
Alberto Cavalcanti (Brasil, produzindo na França) – Rien que lês heures (1926)
Luis Buñuel (Espanha) –
Tierra Sin Pan (1931)
Humprey Jennings (Inglaterra) – Listen to Britain (1941)

Autor

Produtor e diretor de documentários. Pesquisador da história e teorias do cinema de nao ficcçao. Master en Documental Creativo (Universidad Autonoma de Barcelona). Selecionado para o DocLab (HotDocs Festival, Toronto)